Estudo inédito do Unicef aponta alto consumo de alimentos ultraprocessados em lares atendidos pelo Bolsa Família
Crianças com idade entre zero e seis anos, de famílias beneficiadas pelo programa Bolsa Família, estão com seu desenvolvimento em risco devido ao alto consumo de alimentos ultraprocessados e a insegurança alimentar, segundo um estudo do Unicef.
“Tal cenário é resultado de uma série de fatores que passam pela falta de políticas públicas para a promoção de uma alimentação saudável e acessível entre as famílias mais pobres, a falta de informação sobre o que são os produtos ultraprocessados e os impactos do seu consumo, e o marketing da indústria desse tipo de alimentos. Isso se agrava ainda mais com a insegurança alimentar aumentada pela redução de renda das famílias mais vulneráveis no contexto da pandemia de covid-19”, explica Stephanie Amaral, oficial de Saúde e Nutrição do Unicefno Brasil.
O estudo Alimentação na primeira infância: conhecimentos, atitudes e práticas de beneficiários do Programa Bolsa Família, realizado pelo Unicef, analisou os hábitos alimentares de famílias com crianças menores de 6 anos apoiadas pelo Bolsa Família, agora substituído pelo Auxílio Brasil. Foram entrevistadas 1.343 pessoas responsáveis por 1.647 crianças, em 21 estados. A produção editorial e visual da publicação foi realizada pela Cross Content.
Cerca de 80% das famílias relataram o consumo de alimentos ultraprocessados pelos pequenos no dia anterior à entrevista. Os alimentos mais consumidos foram biscoitos salgados ou recheados e bebidas açucaradas, como bebidas lácteas e achocolatados.
Os motivos citados com maior frequência para a compra de alimentos e bebidas ultraprocessados foram sabor (46%), preço (24%) e praticidade (17%). Outro fator é a acessibilidade, uma vez que 64% das famílias afirmaram morar perto de estabelecimentos de refeições prontas e 54%, próximos de lojas de conveniência, enquanto o acesso a hortas perto da casa é menor, apenas em 15% dos casos.
Falta de informação
O estudo aponta como a falta de informação adequada impacta de maneira preocupante os hábitos alimentares dessas famílias, que enfrentam barreiras para identificar o que é de fato um alimento saudável. Pouco menos da metade (48%) das famílias não se sente confiante para interpretar os rótulos dos alimentos. Soma-se a isso o fato de que apenas 34% afirmaram que costumam lê-los e entendê-los com frequência antes da compra.
A maioria dos entrevistados (83%) não considera que seus filhos ingiram esses alimentos numa frequência maior do que deveriam. Cerca de um quarto da amostra relaciona erroneamente os alimentos ultraprocessados a fontes de vitaminas e minerais para seus filhos e 47% associam pelo menos um alimento ultraprocessado como parte de uma alimentação saudável. Essa percepção é maior nas áreas urbanas, o que pode representar um reflexo da imagem vendida pelo marketing desses produtos, que enfatiza na sua publicidade que esses alimentos são complementados com nutrientes importantes para a alimentação infantil. Tal cenário torna-se especialmente preocupante uma vez que as evidências mostram uma baixa adesão ao aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses de vida (segundo o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil, apenas 45,7% dos bebês com menos de 6 meses de idade são alimentados exclusivamente com leite materno).
Os três tipos de alimentos ultraprocessados mais percebidos como saudáveis foram pão de forma (47%), achocolatados e cereais matinais (35%) e bebidas lácteas e/ou queijo petit suisse (23%).
Acesso a alimentos saudáveis
O acesso dificultado à alimentação saudável foi apontado por mais de 80% dos entrevistados, e a baixa diversidade na dieta por 25%. Crianças menores de 2 anos que vivem na Amazônia Legal, por exemplo, são mais sujeitas à baixa diversidade na dieta do que no Semiárido ou nas capitais. A incidência de famílias em situação de insegurança alimentar também é maior em áreas rurais e na Amazônia Legal, antes e durante a pandemia.
Em três quartos das famílias entrevistadas há provável dificuldade na introdução de variedade na alimentação das crianças, o que pode influenciar a diversidade da alimentação e a ingestão de nutrientes. O estudo demonstrou que mais de um terço da amostra (35%) não ingere a quantidade necessária de ferro e quase metade (46%), de vitamina A.
Pandemia e insegurança alimentar
A pandemia da covid-19 trouxe consequências preocupantes na questão de segurança alimentar dos brasileiros. Os reflexos da crise sanitária global recaíram sobre o acesso à renda e à alimentação adequada. Muitas pessoas perderam o apoio de espaços institucionais, como escolas que ofereciam merendas, e tiveram que centralizar a alimentação nos domicílios. Essa mudança ampliou a incidência de famílias em situação de insegurança alimentar.
Cerca de 72% das famílias entrevistadas afirmaram que alguma criança com idade até 5 anos e 11 meses que reside na casa deixou de fazer alguma refeição porque não havia dinheiro para comprá-la. Esse número era de 54% antes da pandemia.
“As informações encontradas pelo estudo mostram um cenário preocupante de insegurança alimentar entre as famílias atendidas pelo programa de transferência de renda. Por um lado, a falta de informação tem levado famílias com crianças pequenas a consumirem grandes quantidades de alimentos ultraprocessados, pobres em nutrientes e ricos em açúcares, gorduras e sódio. Por outro lado, a falta de recursos para a compra de alimentos agravada pela pandemia tem colocado o desenvolvimento das crianças pequenas em risco. É necessária uma ação urgente que garanta não só a capacidade das famílias de comprar alimentos, mas de tomar as escolhas mais saudáveis para as suas crianças”, explica Stephanie Amaral.
Recomendações
Com base nas evidências geradas pela pesquisa, é apresentado um conjunto de recomendações para garantir o direito humano à alimentação adequada e saudável a todas as crianças no Brasil. Em resumo, são elas:
Promoção de programas de educação permanente em alimentação, nutrição e saúde voltados para famílias de baixa renda
Os resultados apresentados na pesquisa apontam para uma série de percepções equivocadas da população sobre a classificação dos alimentos ou sua composição nutricional. É preciso investir em políticas de educação alimentar que incentivem a amamentação exclusiva nos seis primeiros meses e a alimentação complementar saudável em casa e no ambiente escolar.
Recomenda-se a inclusão de atividades educativas em alimentação e nutrição no currículo escolar dos estudantes, contemplando creches, escolas, unidades de atenção primária, Centros de Referência de Assistência Social, entre outros. Tais práticas educativas devem promover a prática de atividades físicas e hábitos saudáveis.
Incentivo ao aleitamento materno exclusivo durante os primeiros seis meses
Assegurar políticas de proteção à amamentação exclusiva nos primeiros seis meses de vida significa oferecer às crianças uma oportunidade de ter um crescimento e um desenvolvimento saudáveis. A expansão do tempo da licença-maternidade e da licença-paternidade, ou licença parental, é um dos pontos-chave para a promoção da amamentação exclusiva, durante os primeiros seis meses de vida do bebê, e complementada até pelo menos 2 anos de idade, de acordo com recomendações internacionais. Atualmente, a licença-maternidade de 120 dias no Brasil pode impossibilitar a amamentação no retorno da mãe ao trabalho, principalmente entre famílias em maior situação de vulnerabilidade. Ao mesmo tempo, o rápido retorno do pai ao trabalho reduz a possibilidade de ele dar seu apoio na amamentação e criar vínculos com a criança.
Regulação das propagandas infantis
Crianças pequenas não têm idade suficiente para separar ficção da realidade – e as propagandas infantis de alimentos exploram essa situação, usando mensagens enganosas para estimular o consumo de produtos não saudáveis.
Recomenda-se a urgente ampliação da restrição de publicidade de alimentos e bebidas voltada ao público infantil, a fim de reduzir o consumo de alimentos ultraprocessados e a obesidade infantil.
Aplicação das novas regras de rotulagem frontal aprovadas pela Anvisa
A partir de outubro de 2022, a indústria de alimentos deverá adotar as novas regras de rotulagem frontal aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A partir dessa data, uma lupa apresentará, em destaque no rótulo do produto, informações sobre altos níveis de açúcar, sal, gordura, entre outros. A pesquisa identifica a necessidade de programas de incentivo à aplicação das novas regras.
Tributação de bebidas açucaradas
As bebidas açucaradas são produtos amplamente consumidos mundialmente e seu alto teor de açúcar causa o adoecimento da população. Mais de 50 países em todo o mundo implementam políticas fiscais de tributação de bebidas açucaradas, levando à redução do consumo desses produtos.
Recomenda-se a implementação de uma política tributária que eleve os preços das bebidas açucaradas no Brasil, resultando na redução do consumo e na conscientização da população para fazer escolhas alimentares mais saudáveis.
Ampliação de acesso físico e financeiro a alimentos in natura e minimamente processados
A desigualdade no acesso a alimentos in natura é preocupante e se dá principalmente pela população em situação de vulnerabilidade. Com os efeitos da pandemia de covid-19, essa situação ficou ainda mais difícil.
O estudo aponta para a necessidade de governos se comprometerem para o estabelecimento de políticas de proteção e ampliação do acesso físico e financeiro a alimentos in natura. Para isso, é necessária a criação de leis que protejam e fortaleçam a produção local e sustentável de alimentos, valorizem as práticas culinárias tradicionais e incentivem o consumo de alimentos regionais provenientes da agricultura familiar
Sobre o estudo
O estudo Alimentação na primeira infância: conhecimentos, atitudes e práticas de beneficiários do Programa Bolsa Família entrevistou por telefone 1.343 usuários do Programa Bolsa Família vivendo na Amazônia Legal, no Semiárido Brasileiro e em 10 capitais (Manaus, Belém, São Luís, Fortaleza, Recife, Maceió, Salvador, Vitória, Rio de Janeiro e São Paulo). A amostra de entrevistados, composta principalmente por mães (79,5%), mostrou que a maioria dos domicílios tem a figura materna como a principal responsável pelo sustento da família (56%). O estudo é uma realização do Unicef em parceria com a empresa de seguros AXA, que tem apoiado o Unicef em ações de promoção da alimentação saudável na primeira infância, desde a amamentação até os 5 anos, em um projeto com duração de três anos. A pesquisa foi executada pela consultoria Plan Eval. A produção editorial foi realizada pela Cross Content.
Alimentos ultraprocessados são alimentos fabricados pela indústria a partir de substâncias extraídas ou derivadas de alimentos ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas como petróleo e carvão (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos). Os exemplos são vários tipos de biscoitos, sorvetes, balas, temperos instantâneos, salgadinhos, refrigerantes, entre outros. Esses são alimentos ricos em gorduras, sal e açúcares, e pobres em nutrientes. Além disso, elevam os riscos de desenvolvimento de doenças não transmissíveis, como diabetes, doenças cardiovasculares e, até mesmo, cânceres.
Cross Content e o Unicef
Desde 2003, a Cross Content trabalha com o Unicef. Já realizou 29 livros para a instituição, além de folders, sites, webdocumentários e vídeos. Veja mais sobre os trabalhos neste link.
Em 2018, um livro produzido pela empresa foi vencedor do Best of Unicef Research 2018, que escolhe os melhores relatórios de estudos realizados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância em todo o mundo.
Alimentação na primeira infância: conhecimentos, atitudes e práticas de beneficiários do Programa Bolsa Família
- Produção editorial: Cross Content
- Coordenação: Andréia Peres.
- Edição: Andréia Peres e Carmen Nascimento.
- Revisão e checagem: Luciane Gomide e Érico Melo.
- Projeto gráfico e diagramação: Vitor Moreira Cirqueira.